Rubens Amador

Seu Natalino

Por Rubens Amador
Jornalista

Do leito 123 da enfermaria se sabia pouco. Só que nele estava internado um velhinho simpático de 86 anos, muito querido por todos, principalmente pelas três enfermeiras que, em rodízio, o cuidavam desinteressadamente. Procurava não dar trabalho e estava sempre de bom humor, apesar das atrozes dores que sentia, derivadas de um problema ósseo muito sério. Ele perguntava, inocentemente, para as enfermeiras se sabiam por que ele se chamava Natalino. Elas fingiam não saber e ele respondia triunfante: “Por que nasci num dia de Natal!”.

Franzino, barbeava-se todo dia e colocava um perfume barato. Vez por outra a dor era tanta que ele pedia, sorrindo, ao médico, uma injeção de morfina. No outro dia ele contava às enfermeiras os lindos sonhos que tivera devido ao alcalóide. Vivia dizendo que era no Natal que tudo de bom lhe acontecia. E contava que estivera na Itália, na Segunda Guerra, como expedicionário, e que uma granada lhe deixara encravado próximo ao coração um perigoso estilhaço. E que um jovem médico americano resolvera operá-lo.

Era dezembro e fazia muito frio na região de Montesi. Operado, dois dias em coma. Saiu dele e verificou que houvera sido salvo exatamente em um dia de Natal. “Viram? Em cada 25 de dezembro tudo me acontece de bom!” Contava que num 24 de dezembro casara, mas entrara o Natal, em lua de mel, e sorria com certa malícia. E então olhava a foto junto com a esposa, em sépia, tendo uma colcha bonita de fundo por sobre a mesinha do hospital.

Certo dia, seu Natalino disse-lhes que ia revelar um segredo: que desde pequeno acreditava em Papai Noel! Mas que elas não dissessem para ninguém, senão iam dizer que ele estava ficando caduco. Faltava apenas uma quinzena para a grande data. À tarde, uma delas, de longe, viu se acercarem do leito do enfermo três senhores bem vestidos que com seu Natalino conversavam. Quando os homens se retiraram, elas vieram curiosas e perguntaram-lhe quem eram aqueles senhores. Ele respondeu: são militares da Segunda Região que me vieram visitar e queriam saber se eu, como ex-pracinha, não queria me tratar em um hospital militar. Eu lhes respondi que por nada deixaria esta casa, porque eu tinha aqui três “sobrinhas” maravilhosas que me cuidavam com muito carinho. A partir deste dia as enfermeiras passaram a chamá-lo de general e, sempre que se aproximavam dele, davam-lhe continência.

Afinal, chega o dia de Natal. Suas três amigas iriam passar a data com seus familiares. Foram lá no seu Natalino e disseram-lhe que iam se afastar por um dia, mas que ele fora muito recomendado às outras colegas. Ele sorriu e disse-lhes que fossem felizes, pois ele também estava feliz pela data que chegara, dia do seu aniversário. Ele agradeceu o pequeno bolinho que elas lhe trouxeram e se comoveu ao ter de apagar as duas únicas velinhas que sumarizavam 86 anos de vida. Ao retornarem no outro dia, dirigindo-se à enfermaria, viram contristadas que o leito estava vazio. Foram informadas que ele morrera pela madrugada, dormindo, sem um só gemido. Elas entreolharam-se e pensaram uníssonas: Papai Noel recompensou-o!

Dias depois as três jovens foram chamadas na direção do hospital. Lá estavam os mesmos senhores que tinham visto há poucos dias conversando com seu Natalino. Eram tabeliães que tinham vindo cientificá-las que haviam sido contempladas pelo senhor Natalino Fioravante Neto como herdeiras universais dele, que lhes legara em testamento: cinco propriedades na cidade; um campo com 800 hectares, em muito boa zona e bem arrendado; bem como várias joias de família, além de generosa poupança.

Por certo seu Natalino, que morrera acreditando em Papai Noel, deve ter seguido feliz em sua jornada, principalmente por ter podido travestir-se do bom velhinho naquele seu último Natal, retribuindo parte do amor prodigalizado a ele, um idoso aparentemente muito pobre e sem parente nenhum.​

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